Duzentos e cinquenta e seis dias.
Esse foi o tempo de vida da Brawn GP. Menos de 37 semanas. Ou seja, um bebê que tenha sido concebido no dia 06 de março de 2009, mesmo dia em que Ross Brawn anunciou ao mundo sua nova equipe, só nasceu depois que esta não mais existia. Ainda assim, o time que durou menos do que uma gestação humana normal fez em 17 corridas 172 pontos de 306 possíveis, um aproveitamento de 56%. Venceu também mais da metade das provas, oito, e largou da pole cinco vezes. E, em Interlagos, num final de semana em que o clima estava especialmente louco, coroou sua breve existência com o campeonato mundial de construtores e de pilotos, em 18/10/2009.
Mas a gestação desta história de sucesso foi bem maior do que sua meteórica passagem por um esporte conhecido pela velocidade e constante mutação. Tudo começou com a Tyrrell, que em 1999 foi comprada pela BAR. Esta equipe durou até 2005, quando foi adquirida pela sua fornecedora de motores (atenção pois aqui a roda da coincidência começa a girar), a Honda, que desejava retornar à Fórmula 1 como equipe. Três anos de resultados ruins bastaram para que a montadora japonesa desistisse da brincadeira e pensasse no haraquiri, mas havia o problema do passivo trabalhista. O mundo enfrentava uma crise financeira e os donos do cofre lá no Japão não sabiam se era melhor continuar enterrando dinheiro na Fórmula 1 ou pagar o monte Fuji de ienes que era devido a todos os funcionários. E é aí que entra nosso herói de hoje, Ross Brawn.
Brawn (que já foi brilhantemente apresentado aqui), fazia parte da diretoria esportiva do time, e sabia que o carro em desenvolvimento para a temporada seguinte, o RA109, vinha com uma pecinha que poderia mudar o jogo de forças no campeonato. Utilizando uma modalidade de compra conhecida como manager buyout, que é o nome chique para que um membro diretor compre a empresa, ele assumiu o negócio e ainda conseguiu um aporte de 150 milhões de dólares dos antigos donos, que pagaram o valor sorrindo, pois ainda assim representava uma economia para eles. Mas avisaram: não vamos fornecer mais motores para a categoria.
Ross bateu à porta da Mercedes, e conseguiu que os alemães equipassem seu renomeado BGP001, o único de seu nome. Também manteve a dupla de pilotos principais da Honda em 2008, Jenson Button e Rubens Barrichello. Estava tudo ok: anúncio feito no começo de março, e ‘bora para os testes. Foi aí que o resto do mundo descobriu o que Brawn já conhecia.
Ao quebrar recordes da pista com um carro estreante, montado sobre um chassi de uma equipe de final de pelotão, Barrichello fez todos os holofotes voltarem-se para a bela pintura branca, preta e amarela e principalmente para o que havia abaixo dela: a tal da pecinha, o difusor duplo.
Não sou o cara da engenharia, então não copiem esse parágrafo para colar na prova (vão lá no Tweeter da Erika Prado e perguntem para ela como é o jeito certo). Na melhor das hipóteses, serei bastante simplista. Na mais provável, estarei completamente errado. Mas, bem resumidinho, o difusor é uma peça que direciona o fluxo de ar da parte de baixo do carro. A grosso modo, ele facilita ao ar que “escape” por trás, criando um ambiente de menor pressão sob o chassis que “gruda” o carro no chão, permitindo que ele faça curvas e ultrapassagens mais rápido. É a tal da aerodinâmica, meus amigos.
O difusor duplo nem sequer foi uma ideia exclusiva da Honda: a Williams e a Toyota também vieram com uma solução semelhante naquele ano. O pulo do gato era a forma do mecanismo da Brawn, numa espécie de “V”, que deu ao bólido cerca de meio segundo de vantagem sobre os demais.
“Assim não pode! Assim não dá!”, gritaram Ferrari, McLaren e Renault, que estavam contentes em ficar na parte de cima da tabela. Mas a FIA disse que não infringia o regulamento. As três equipes recorreram, e ficaram esperando o resultado. Esse foi o erro delas.
Na primeira prova do ano, na Austrália, a Brawn chinelou: dobradinha no sábado e no domingo, com Button à frente. Vitória na estreia, com apenas 23 dias de vida. A única outra vez que uma equipe tinha conseguido isso havia sido em 1954, com as flechas prateadas da Mercedes. E na corrida seguinte, a mesma história: 1-2 de Button e Barrichello no final de semana inteiro. Depois do GP da Malásia, saiu o resultado da apelação junto à FIA, e a decisão foi favorável a Ross Brawn. Só então as grandes começaram a se mexer, mas era tarde demais. Nas primeiras sete provas, Button venceu seis, só deixando escapar o GP da China, vencido por uma Red Bull que, ao invés de ir chorar no colo da mãe, resolveu adaptar seu carro depois de ver o estrago nos treinos de pré-temporada.
Quando o difusor tornou-se comum, as coisas ficaram mais difíceis para a equipe novata, que tinha pouco dinheiro para manter a evolução. Só que a vantagem adquirida no início foi bem administrada. Barrichello ainda venceu duas outras provas, com boas performances aliadas a estratégias de corrida acertadas, e Button apareceu algumas vezes no pódio. Isso, somado aos pontinhos amealhados em quintos a oitavos lugares, e com os adversários dividindo os primeiros postos, permitiram a Button e à sua equipe chegarem ao Brasil para a penúltima prova do campeonato com os títulos quase garantidos.
Quando escrevi lá em cima que o clima estava completamente insano naqueles dias, foi porque senti na pele. Eu estava no autódromo naquele sábado que marcou a sessão de classificação mais longa da história da Fórmula 1, com 2 horas e 41 minutos. Se dizem que a chuva vem da represa, a represa estava com uma bela enxaqueca naquele dia. Foi uma verdadeira tempestade tropical, daquelas de encharcar até a alma e enrugar os dedos do pé, mesmo que você estivesse usando tênis e meias (que ficaram impraticáveis). Como sempre, sentávamos sob a árvore que fica na direção das últimas posições do grid no Setor A, e não bastasse a chuva, o vento que soprava ainda sacudia seus galhos e continuava a nos molhar mesmo nos breves períodos de estiagem. Dentro da pista os pilotos também sofriam, e numa belíssima apresentação Barrichello conseguiu tirar uma volta de pole position, quando a luz natural já estava pegando o trem atrás da reta oposta para ir embora. Em seguida vinham a Red Bull de Mark Weber, a Force India de Adrian Sutil e a Toyota de Jarno Trulli. Button largaria apenas da 14ª posição.
No domingo, ao chegarmos de manhã ao autódromo, um clima nublado e um pouquinho frio pairava sobre Interlagos. Quando os portões se abriram às sete horas, uma garoa leve caía sobre a pista. “Sabiamente” evitamos a citada árvore, ficando estrategicamente à sua direita.
Às 10 horas da manhã doze sóis haviam se erguido sobre a cidade de São Paulo. Um calor senegalesco fazia fumaça subir do asfalto. Ao meio dia as pessoas sensatas começaram a ser abençoadas com a sombra da árvore, enquanto nós, os espertos, cozinhávamos como mantas de costela ao redor do fogo de chão. Foi um belo final de semana.
Na hora da largada, confusões entre Kovalainen, Vettel e Fisichella, que estavam mais atrás no pelotão, além de um encontrão entre Trulli e Sutil que tirou ambos da prova, levando de lambuja Fernando Alonso,causaram a necessidade de safety car. Quando a prova foi resumida, Barrichello não conseguiu manter por muito tempo um carro que já estava devendo para os concorrentes à frente, e o resultado final da prova foi Weber, Kubica (BMW) e Hamilton (McLaren). Rubens terminou em oitavo, enquanto Button chegava na quinta colocação e sagrava-se campeão do mundo. A Brawn GP se tornava, pouco mais de oito meses depois de nascer, a campeã de construtores da categoria máxima do automobilismo.
Logo após o fim da temporada, Ross Brawn veio a público em 16 de novembro para anunciar que a Mercedes, fornecedora de motores da equipe, iria assumir o comando da operação pois desejava voltar à Fórmula 1 (e assim completamos uma volta inteira da roda da coincidência). Barrichello, que já havia sido alertado que os alemães iriam querer Nico Rosberg em um dos cockpits combinou com Frank Williams uma troca quid pro quo, enquanto Button, sentindo-se traído por não ter sido avisado, conseguiu uma vaga na McLaren. E assim terminou o conto de fadas da equipe mais eficiente da história do automobilismo.
lll FORA DAS PISTAS
A data de hoje marca a primeira publicação de Moby Dick, de Herman Melville, além dos nascimentos do roteirista Chuck Lorre, criador das séries Two and a Half Men e The Big Bang Theory, da tenista Martina Navratilova, do piloto Pascal Wehrlein, do brucutu Jean Claude Van Damme e do Charles Edward, o primo de Marvin Berry, que ligou para ele direto do baile Encanto no Fundo do Mar para mostrar um som esquisito que estava rolando por lá. Foi assim, de acordo com De Volta Para o Futuro, que Charles Edward, ou melhor, Chuck Berry, criou o rock and roll.
https:/youtu.be/cQGCWf6azHY
https:/youtu.be/S1i5coU-0_Q