Os espiões são os elementos mais importantes de uma guerra, porque neles repousa a capacidade de movimentação de um exército. Sun Tzu, em A Arte da Guerra
Espionagem é uma prática comum entre governos e indústrias. Ter conhecimento prévio das manobras e recursos de seu inimigo ou concorrente é ter vantagem no campo de batalha, seja bélica ou comercial. Quando se lida com milhões ou bilhões, e o que parece ser um detalhe insignificante pode pender a balança para o sucesso e o fracasso, cada migalha de informação é decisiva.
Na Fórmula 1 isso não é nem um pouco diferente. Desde que começamos a ver corridas percebemos os olhos grandes de pilotos e mecânicos nas máquinas e estratégias dos boxes ao lado. “Com que pneus eles vão começar a prova?”, “será que vão para uma ou duas paradas?” ou “como é esse negócio de difusor duplo mesmo?” são balões de pensamento que perenemente sobrevoam os capacetes no paddock.
Dizem que a diferença bruta de velocidade entre o melhor e o pior piloto do grid não é superior a um segundo (nesses tempos de Strolls e Sirotkins pode ser um pouco mais, mas vamos arredondar), enquanto do carro mais rápido para a jabiraca que se arrasta no fim do grid temos três ou quatro segundos. Ou seja: se colocarmos o melhor piloto no pior carro, ele não vai passar da meiúca na maioria das vezes, mas ao sentar o braço duro do ano no cockpit mais rápido teremos alguém que pelo menos marca pontos em todas as provas que conseguir permanecer no asfalto.
Em 2017, a diferença de premiação para a equipe mais bem colocada e que ficou em segundo lugar no campeonato de construtores foi de 7,3 milhões de libras (ou 35 milhões de reais na cotação do dia em que este texto está sendo escrito). Dá pra pagar umas duas mariolas e uma tubaína para um espião, certo? Afinal de contas, um espião bem tratado e bem pago vai ser extremamente útil.
Só há um tipo de espião mais fiel e mortífero do que o que recebe bem: aquele que quer se vingar.
Nigel Stepney foi um mecânico muito respeitado em Maranello. Após começar a carreira no Endurance, ele desembarcou na categoria mãe pela Shadow em 1977. Após uma passagem pela Lotus, no final dos anos 80 foi contratado pela Benetton, onde ganhou a confiança de Ross Brawn, Rory Byrne e Michael Schumacher. Quando estes foram para a Ferrari para arrumar a casa, levaram junto o inglês grandalhão e com jeito agressivo. Aos poucos ele foi botando ordem na bagunçada cozinha italiana, até que os anos dourados de 2000 a 2004 chegaram. Stepney era chefe dos mecânicos, e todos o respeitavam.
Até que no final de 2006 o que ele pensava ser sua grande chance tornou-se o seu pesadelo. Schumacher anunciou a aposentadoria, e Brawn decidiu tirar umas férias prolongadas (ou, no caso de gente chique e rica, um “período sabático”). Bom, se o Diretor Técnico está indo embora e eu sou o segundo em comando, já dá pra comemorar a promoção, certo? Errado.
No melhor estilo The Big Bang Theory onde os físicos tiram sarro de Howard porque ele é engenheiro, Nigel teve que ver o chefe de RH (!!!) da Scuderia, Mario Almondo, ser anunciado no cargo que deveria ser seu. O motivo? Stepney não era engenheiro, e não poderia assumir a diretoria técnica.
Irascível por natureza e contaminado por quinze anos de convivência com os cidadãos da Bota, ele perdeu as estribeiras. “Não estou contente com o time,” disse à Autosport. “Eu quero seguir em frente com a minha carreira, e isto não vai acontecer por aqui. Quero passar um ano longe da Ferrari.”
A equipe condescendeu e não lhe deu nenhuma reprimenda pelo desabafo. Inclusive, quando Nigel pediu para não mais viajar para os GPs, concentrando-se na fábrica, os chefões aceitaram. Mas o pessoal de Maranello não levou tão de boa assim, não.
A Ferrari é única na Itália. Se você fala contra ela, é como falar contra o Papa,” ele diria mais tarde. “Eu comecei a me sentir um traidor. Ninguém mais falava comigo, a situação estava insustentável.
Na verdade, a situação ficou realmente insustentável em maio de 2007: alguns mecânicos encontraram talco ao redor da boca do tanque do carro de Felipe Massa, que estava sendo preparado para o GP de Mônaco. Isso era sabotagem. A polícia foi chamada, e após revistar todo mundo encontrou talco nos bolsos de Nigel Stepney, que foram confiscados. Sim, isso mesmo: no meio de uma suspeita de sabotagem, tínhamos um mecânico inglês só de cuecas no meio da fábrica da Ferrari.
Nigel insistia que não havia sido ele, mesmo tendo sido apanhado com as calças na mão (desculpem, não resisti). Além de filmagens do circuito interno o mostrarem suspeitamente próximo aos tanques de combustível, o mesmo talco foi encontrado na sua casa (a certeza veio após a análise química do produto).
O inglês foi demitido sumariamente, e um processo legal foi instaurado. Por isso, semanas depois do incidente com o talco, as calças e o tanque de gasolina (parece nome de um livro de Nárnia, não?), quando Stefano Domenicali recebeu um e-mail, pensou imediatamente que sabia quem era o culpado.
Corta para o condado de Surrey, na Inglaterra. Surrey fica no quintal da fábrica da McLaren em Woking, o centro da localidade a menos de cinco quilômetros do centro automotivo, um pulinho de 11 minutos de carro. Um atendente de uma loja especializada em cópias estava tendo uma tarde modorrenta quando uma loira que se apresentou como Trudy entrou e pediu para que ele digitalizasse em CDs alguns documentos – cerca de 780 páginas. Ok, era isso que ele fazia.
Acontece que o cara era fã de Fórmula 1 – também nada estranho quanto a isso, já que vivia às margens da agitação de Woking. Apenas uma coisa não batia: aquele inglês de meia idade era um tifoso, fã de Schumacher e da Scuderia. Por isso, quando bateu os olhos nos documentos, o emblema do cavalinho rampante imediatamente lhe saltou à vista. “Como é seu nome, mesmo?” ele perguntou à cliente. “Trudy Coughlan,” foi a resposta.
Assim que ela saiu nosso anônimo personagem resolveu olhar mais de perto, e viu que em suas mãos estavam vários esquemas gráficos, reportes técnicos e informações estratégicas e financeiras da Ferrari. Ele foi ao Google e, pesquisando o nome da loira, descobriu que ela era esposa de Michael Coughlan, designer chefe da McLaren. Próximo passo foi entrar na página da Ferrari e encontrar o endereço de e-mail do Diretor Esportivo do time. “Caro Sr. Domenicali;” ele escreveu, e o que seria conhecido como Spygate começou.
A Ferrari imediatamente recorreu à FIA e à justiça, pois o que parecia apenas sabotagem de um funcionário descontente rapidamente se transformava em um caso de espionagem industrial em larga escala. A casa de Mike Coughlan foi revistada, e provas incriminatórias foram encotradas, entre restos de papel picado e queimado. Estávamos no meio do campeonato, próximo às férias de verão, e a McLaren liderava a tabela.
Quando a FIA anunciou a abertura de investigação o CEO da equipe Honda veio a público para dizer que havia se encontrado com Stepney e Coughlan recentemente, quando ambos o procuraram pedindo emprego, mas apressou-se em dizer que nenhuma informação confidencial foi aberta durante a reunião. Veio à tona que a dupla era amiga de longa data, e que frequentemente se encontrava.
Ron Dennis, o chefão da McLaren, estava possesso e tentava evitar que o time fosse prejudicado. Suspendeu Coughlan imediatamente, e abriu a sede em Woking para uma investigação da FIA, certo de que nenhuma vantagem havia sido conseguida em uma transação que, segundo ele, tinha acontecido entre dois homens que não levaram as informações à frente, exceto na tentativa de conseguirem um emprego melhor em outro lugar. A FIA realmente não encontrou nenhuma irregularidade, e declarou que a McLaren havia sido considerada inocente. A Ferrari, inconformada, entrou com um recurso na corte italiana, pedindo maiores investigações.
Em agosto, no GP da Hungria, quando tudo parecia estar começando a esfriar, as coisas explodiram: durante o classificatório, o novato Hamilton não permitiu que o veterano Alonso passasse para ter um melhor espaço na sua volta lançada. O espanhol, em represália, ficou parado no boxes para prejudicar o companheiro de equipe – e acabou penalizado com a perda de posições no grid. Na conferência com a imprensa, ambos discutiram em público. No domingo, antes da corrida, Alonso foi ao motorhome da equipe e ameaçou Ron Dennis, dizendo que sabia dos e-mails recebidos pelo engenheiro da McLaren e que tornaria tudo público caso ele não o apoiasse na briga interna. Dennis ficou espantado: como assim, os pilotos sabiam daquela situação? Ainda na tentativa de tomar o caminho da transparência, ligou para Max Mosley, à época chefão da FIA, e contou o que havia ocorrido. Mosley o acalmou, disse que iria pensar sobre o assunto e que retornaria a Dennis antes de tomar qualquer decisão.
Não foi o que aconteceu. Cerca de um mês depois Mosley encaminhou um ofício para Alonso, Hamilton e para o piloto de testes da McLaren Pedro de la Rosa exigindo que entregassem quaisquer materiais contendo referência à informações confidenciais da Ferrari. Em 13 de setembro os diretores e advogados da McLaren e da Ferrari encontraram-se em Paris, na sede da FIA, e foram confrontados com quase 300 mensagens de texto entre Coughlan e Stepney, além de inúmeros e-mails discutindo o assunto entre mecânicos da McLaren e inclusive os pilotos. Por exemplo, De la Rosa escreveu em março: “Oi, Mike, você sabe me dizer a distribuição de peso dos Carros Vermelhos? Seria importante saber para podermos testar no simulador. Obrigado!”. Outro e-mail entre dois engenheiros discutia se as imagens do assoalho estavam nítidas.
A pá de cal era um e-mail de De la Rosa para Alonso: “Toda a informação da Ferrari é bastante confiável. Ela vem de Nigel Stepney, o ex-chefe dos mecânicos deles – não sei qual o cargo dele agora. É a mesma pessoa que no disse na Austrália que Kimi iria parar na volta 18. Ele é muito amigo do nosso designer chefe, Mike Coughlan.”
Mais explícito impossível. Esse tipo de informação se caracteriza como vantagem em qualquer lugar do mundo. É como, mais do que você ter um par de reis no poker, saber que o outro adversário tem um par de ases.
Mosley deu o veredito: todos os pontos de construtores da McLaren naquele ano estariam inválidos. A multa seria de 100 milhões de dólares, a maior da história da Fórmula 1. E o time inglês teria que abrir todos os seus projetos confidenciais para 2008, para que uma delegação de técnicos da entidade averiguasse se não havia nenhum componente que tivesse sido desenvolvido com base na documentação do rival.
Enquanto isso, Kimi Raikkonen vencia o GP do Brasil naquele ano e tirava dos pilotos da McLaren o título por um único ponto.
Em 13 de dezembro de 2007 tornou-se pública uma carta de Martin Whitmarsh, diretor de operações da McLaren para a FIA. Era uma carta de rendição incondicional. O time reconhecia que um número de funcionários da McLaren haviam tido acesso à informação técnica sobre a Ferrari, e se desculpava pelo ocorrido e por ser necessária a intervenção da FIA para que isso fosse de conhecimento de todos. Whitmarsh também oferecia uma “moratória” no desenvolvimento do carro, a fim de que absolutamente nenhum conhecimento indevido fosse utilizado em benefício da McLaren. No mesmo dia, Max Mosley disse à empresa que havia solicitado o cancelamento de uma reunião agendada para fevereiro para discutir este assunto e que considerava o caso encerrado.
lll FORA DAS PISTAS
Se você foi apresentado à sua mamãe no dia 13 de dezembro, compartilha aniversário não apenas com minha querida e saudosa avozinha materna como também nasceu no mesmo dia que Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, Steve Buscemi, o ator preferido do Tarantino (duvido você encontrar um filme ruim com a participação de Steve Buscemi) e Amy Lee, a bela e poderosa vocalista do Evanescence.
lll A Série 365 Dias Mais Importantes do Automobilismo, recordaremos corridas inesquecíveis, títulos emocionantes, acidentes trágicos, recordes e feitos inéditos através dos 365 dias mais importantes do automobilismo.